ENTREVISTA RAIMUNDO CARUSO
O jornalista, historiador e escritor Raimundo Caruso lança amanhã, o livro “Bolívia jakaskiwa”, que, em um de seus dialetos nativos, significa “Bolívia Está Viva”. Uma Bolívia com 10 milhões de habitantes, 70% indígenas e em situação miserável. A obra foi escrita junto à sua esposa, a geógrafa Mariléa Caruso, com quem Raimundo percorreu o país governado por Evo Morale durante o mês de janeiro, entrevistando mais de 30 pessoas. Confira trechos da entrevista que Raimundo Caruso concedeu ao Diário
Bastante criticada pela imprensa, a Bolívia experimenta um momento de afirmação de sua identidade étnica e histórica. O que representa o governo de Evo Morales para o povo boliviano e para o mundo?
Durante 500 anos a população originária boliviana, derrotada na guerra da conquista espanhola a partir de 1530, foi submetida a trabalhos forçados, sem direito a salário, e enquadrada num esquema de domínio racista que procurou, desde o princípio, diminuí-la, humilhá-la, e fazê-la parecer inferior. Assim, até a revolução popular de 1952, o indígena boliviano não votava e estava proibido de freqüentar escolas. E quando um latifundiário vendia uma fazenda, ele costumava relacionar como bens e como valores tantas cabeças de gado, tantas árvores e tantos indígenas, que eram a mão-de-obra desumanizada que botava a economia rural em movimento. Neste sentido, a presença e a visibilidade de Evo Morales como presidente da Bolívia, o cargo mais importante, mais complexo e mais difícil do País, está mostrando à população indígena, seja ela aymara, guarani ou quechua, que ela não é inferior, que eles são iguais aos brancos, apenas que mais democráticos, mais honestos e mais sábios.
O senhor e sua esposa estiveram junto aos bolivianos em janeiro. Por que o interesse em escrever sobre a Bolívia? Quais foram as maiores surpresas de seus encontros que resultaram em ´Bolívia Está Viva´?
Mariléa Caruso e eu estivemos na Bolívia em janeiro passado, com o claro objetivo de escrever um livro abrangente sobre o país. Para nós era evidente que algo novo estava acontecendo na Bolívia, só que não sabíamos precisamente o quê e com qual profundidade. Então viajamos para La Paz e o interior do país. Esse tipo de trabalho não é novidade para nós, que já produzimos livros sobre a Amazônia, a Nicarágua e até uma longa pesquisa sobre os jangadeiros nordestinos. Então, em vinte dias úteis realizamos trinta entrevistas gravadas com historiadores, líderes indígenas, professores universitários, filósofos e economistas, produzindo um amplo panorama da política e da sociedade da Bolívia contemporânea. Sem falsa modéstia, acredito que nem na Bolívia eles conseguiram produzir uma pesquisa tão atual e tão abrangente.
Fala-se em revolta das províncias do oriente boliviano, historicamente ligadas à elite. Até em plebiscito por sua emancipação. Como estava a situação quando vocês visitaram o país e como está agora? Há possibilidade de golpes desencadeados pela inteligência norte-americana?
Antes de mais nada é bom lembrar que mais de 70% da população é indígena, um conjunto de povos que teve e ainda tem uma sofisticada agricultura e uma complexa organização social. Sua visão de mundo é comunitária, articulada com a natureza, e não individualista, que vê no lucro o supremo bem social. Por outro lado, os latifundiários e os grandes pecuaristas de Santa Cruz, muitos ocupando propriedades ilegais, com a eleição de Evo Morales, perderam uma série de privilégios econômicos, e também passaram a temer a reforma agrária. Ideologicamente, se recusam a ser governados pela maioria histórica do País, e que até ontem era considerada como povos inferiores. Já o embaixador norte-americano Philip Goldberg, expulso por Evo Morales, era um ativo aliado da direita de Santa Cruz e um notório agente desestabilizador do país. No entanto, apesar de todas as provocações da oligarquia de Santa Cruz - que ocupou aeroportos, bloqueou estradas, explodiu gasodutos e agrediu, humilhou e assassinou indígenas desarmados - o governo de Evo Morales está absolutamente estável, não reprimiu ninguém, e não sofre nenhum risco de golpe.
Qual sua visão do avanço das esquerdas na América do Sul?
De uma maneira geral, o que se está havendo na América do Sul não é propriamente um avanço das esquerdas, mas sim um cansaço e uma impotência generalizados nos partidos políticos tradicionais. Por exemplo: na Bolívia, não há mais partidos de esquerda, nem comunista e nem socialista. O MAS, que elegeu Evo Morales, é um movimento indígena, e não um partido socialista. Quer dizer, as débeis esquerdas latinoamericanas estão apenas pegando carona, como figuras subalternas e inexpressivas, nos novos movimentos de massa, sejam indígenas ou populares em geral.
E o governo Lula, vem atuando de forma coerente com o governo boliviano?
Apesar do Lula ser um político de centro, com um pé paternalista nas populações marginalizadas e o outro nas federações de indústrias, isto é, um político que não se assemelha em quase nada com o perfil renovador de um Evo Morales, Rafael Correa (Presidente do Equador) ou Hugo Chávez, ele tem um papel contemporizador nas disputas entre as diversas nações. Inclusive entre setores da burguesia brasileira, que chegaram a exigir ações mais fortes contra os países, naturalmente, mais...fracos e débeis do continente.
O senhor acredita que o livro ajude a compreender melhor a sociedade boliviana?
Nossa intenção, realizada desde a perspectiva de um jornalismo independente, foi justamente essa: trazer informações que a grande imprensa não possui ou não quer divulgar, e colaborar na formação de uma opinião pública brasileira isenta, equilibrada e solidária com os esforços dos países mais pobres da região, na luta contra a miséria e o colonialismo.
O senhor fala em resgate de ideais de justiça comunitária e em “modernas mudanças econômicas promovidas por Evo Morales”. Até que ponto estas novas realidades estão associadas às propostas do governo Chávez? Quais as proximidades e diferenças destes projetos?
Tanto na vida de um artista como na vida das nações, sempre que se quer desqualificar ou desprestigiar qualquer iniciativa, se costuma dizer que é cópia de alguém ou de alguma coisa, que é marionete e que não tem vontade própria. Essa comparação do governo de Evo Morales com o de Chavez, da Venezuela, é bobagem. Evo Morales tem uma pauta política e social indígena, combinada, naturalmente, com os avanços modernos da ciência e da tecnologia, enquanto que Chávez fala de um socialismo à maneira ocidental. A política de Evo Morales tem uma identidade boliviana, ao passo que a política de Chávez se inspira numa ideologia européia, e essas são coisas completamente diferentes.
Quais são os maiores desafios à implantação deste projeto boliviano em um cenário de globalização do capitalismo?
O maior desafio político, cultural e civilizatório boliviano é conseguir harmonizar duas sociedades bastante diferentes, isto é, a organização social de origem indígena com as empresas e as ideologias capitalistas. É por essa razão que a nova constituição do país, a ser votada no final do ano, reconhece na Bolívia uma nação multicultural e com propriedades estatais, privadas e comunitárias.
No caso brasileiro, a principal crítica ou preocupação se refere ao fornecimento de gás. Como o senhor vê esta questão?
O fornececimento do gás boliviano ao Brasil tem dois problemas. O primeiro é o preço, que foi acertado há algumas décadas e firmado em contrato, por duas ditaduras militares, a brasileira e a boliviana. De quebra, sabe-se hoje, também houve corrupção. Por isso o preço do gás boliviano foi acertado em um quarto do valor real, de mercado. Ora, o brasileiro não é adepto das leis de mercado? Interessante, nesse caso, o governo democrático da Bolívia também é, e por isso exige um preço justo, de mercado. Nada mais natural. Já o segundo problema é a sabotagem dos gasodutos provovada pelas elites de latifundiários racistas de Santa Cruz. Nesse caso, o parque industrial brasileiro será realmente ameaçado de paralização, o que também contraria os interesses da nação boliviana, que necessita urgentemente de recursos para as suas políticas sociais e de infra-estrutura.
Debates marcam lançamento do livro
O livro ´Bolívia jakaskiwa´, de Mariléa Caruso e Raimundo Caruso, será lançado amanhã à noite em Fortaleza. Antes, Raimundo Caruso participa de debates no Auditório Castello Branco da Reitoria da UFC, às 9h30, e amanhã, às15h, no Auditório do Centro de Humanidades da Uece. Ainda amanhã, às 18h30, ele lança o livro na Casa da Anpuh (Avenida da Universidade, 2700). A programação tem o apoio do Mestrado de História Social da UFC, Mestrado Acadêmico de História da Uece, MST, Jornal Brasil de Fato, Imopec, Projeto Liga/Comunicações UFC, Casa Brasil/Cuba-CE, Associação 64/68 - Anistia, Adital.
ANÁLISE
"Bolívia Jakaskiwa"
Mariléa Caruso e Raimundo Caruso
R$ 20
294 páginas
2008
Inti Editorial
HENRIQUE NUNES
Repórter